Oito horas de uma noite de sexta-feira, Ana Clara está com sua taça de vinho e os problemas da semana começam a passar pela mente como em uma uma tela de cinema. Ela é engenheira, recém-formada, paulistana e apesar da pouca idade gerencia o setor de novos empreendimentos em uma grande construtora reconhecida internacionalmente.
Ana Clara estica os pés no tapete macio e vai lembrando de tudo o que se passou na semana: horas-extras, atrasos de fornecedores... apesar de vários imprevistos conseguiu realizar o que tinha se proposto a fazer durante estes dias e hoje se sente no direito de relaxar um pouco.
Lembra do Eduardo, seu namorado. Namorado?
Não se encontram há vários dias, pensa que a agenda lotada dele não permitiu um jantar, um cinema, uma reunião com amigos em comum. É, foi isso.
Nessa semana não deu. Mas também já faz tempo que sua agenda está cheia.
Pensativa demais... não sabe se ele realmente quer uma relação. Será que ela quer?
Às vezes, lembra ela, Eduardo não é muito criativo. Sabe que ela trabalha muito, mas parece que é sempre ela quem tem de tomar a iniciativa e inventar dates, voltinhas...
Roda sua taça, bebe lentamente seu vinho. Seu trabalho vem à mente. Pensa se este emprego está realmente valendo a pena ou se ela está só iludida com a fase inicial da carreira de uma recém-formada com uma grande oportunidade nas mãos.
Ela olha fixamente para uma fotografia abstrata na parede, um presente do seu pai fotógrafo, mira por alguns minutos aquele ponto verde-azul piscina com detalhes brancos. "Ele sempre me cobrou tanto..." Dá um suspiro e questiona se ela é de verdade essa profissional que todos dizem que ela é, ou está vivendo uma historinha inventada.
O vinho ainda está um pouco acima da metade da taça, ela se pergunta: "mas porquê eu preciso bater ESSAS metas nesta empresa?", "e se eu não for trabalhar segunda -feira?", "e se eles encontrarem outra profissional melhor que eu? Tantas engenheiras com suas carreiras consolidadas, porque me colocaram à frente deste cargo?".
"Quando eu devo procurar um psicólogo? Quando devo buscar ajuda?". Espera pela resposta como se houvesse uma. Ela franze a testa, parece estar incomodada com seus pensamentos, pega o telefone e digita no google a palavra ‘psicólogo’. Faz um cadastro rápido e várias opções de profissionais de diferentes abordagens vão surgindo. Ela lê cada descrição, vê as fotos. Sua busca agora é por um bem estar que talvez uma terapia poderia lhe trazer, quem sabe...
Seus olhos param em uma psicóloga em específico. Lê sua apresentação... "algo aí parece clicar comigo". Pensa se tratar de uma profissional interessante, pois estudaram na mesma Universidade, tem um olhar sereno... E então começa aescrever um email para solicitar uma primeira consulta. Num rompante apaga tudo. Pensa com ela "não, não... estou exagerando, não preciso de uma psicóloga, talvez outras pessoas sim. Tem muita gente na pior neste mundo".
"Eu não sofro nenhum tipo de situação extrema, meus pais são maravilhosos, minha infância foi ótima, sempre viajei... E claro, existem pessoas que realmente precisam de uma ajuda psicológica. Tantas pessoas por aí passando por dificuldades, transtornos mentais... tipo o Paulinho, arquiteto. Ele faz terapia. Tem síndrome do pânico, às vezes não consegue nem comparecer às reuniões, que triste... isso não tem nada a ver comigo. Ele precisa da ajuda de um psicólogo, não eu"
Eu não sou nenhuma adicta, descontrolada, doida... não, pára Ana Clara, tem muita gente aí que precisa mais de uma terapia do que você, um psicólogo pode esperar". Levanta, deixa o celular de canto e vai para a varanda. Olha as estrelas enquanto bebe seu vinho.
Continua pensando... "acho que essa vaga que eu ocupo merece alguém mais experiente, eu não me vejo nesse cargo. Esse salário,essas atribuições. Na verdade eu sou a pessoa errada no lugar certo. Eu não tenho competência".
"E ainda tem o Eduardo, ele parece não estar muito investido em mim. E o interessante é que foi assim com aquele carinhada faculdade, com aquele outro no final do ensino médio... não me procuram, não me preenchem, não me surpreendem, nunca".
Não deixa de se sentir comovida e triste ao mesmo tempo quando compara a sua relação com a de Mara e Lalá. As duas suas amigas e em um relacionamento cheio de carinho e amor há 5 anos.
"Cansada, eu estou cansada", ela fica repetindo essa frase em sua cabeça. Agora ela sente a desvitalização de uma forma física, seu corpo está cada vez mais pesado, a mente bagunçada. Vem uma vontade de chorar. Ela deixa a taça de vinho vazia na mesinha davaranda e debruçada olhando para o céu, elabora seu plano de demissão. Chega até a ensaiar o que irá dizer na reunião de segunda-feira.
Também já está decidida sobre o final do relacionamento. Assim que Eduardo telefonar, irá marcar um encontro e pôr um ponto final nesta relação.
Ela vai até a cozinha, toma um copo d'água e cai em si: "não, não... meu trabalho é muito bom. Quantas mulheres queriam estar nesta posição, com esta idade? Acho que estou colocando minhocas demais na cabeça. E o Eduardo é um cara legal... que confusão".
Ela ainda tem dúvidas sobre tudo, é o que parece. "Ai essa terapia... o que a terapia é? Como será o processo terapêutico? Eu só queria estar bem. Todo mundo merece, não é? Talvez isso pode ajudar".
Ana Clara pega o celular de novo, escreve no corpo do email a frase "gostaria de fazer uma sessão nesta próxima semana, quais horários você tem disponíveis?". Clica em "enviar".
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