Desorganização do senso de realidade, da verdade e de si mesmo. O Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo é o diagnóstico de quem passa por longos períodos de vivências traumáticas .
Confusão de valores, dúvida, memórias deformadas e não confiáveis, experiências ominosas muito similares que se repetem ao longo da vida sem que se tome consciência. Estas são algumas das manifestações desta condição.
Conhecer mais sobre o transtorno é algo essencial para que se desvencilhe de um looping nocivo e se evite re-traumas.
O TEPT Complexo é um termo relativamente novo. Profissionais da área da saúde mental tem observado que alguns tipos de trauma possuem sintomas adicionais, mas ainda não entram em consenso se ele é uma forma de transtorno pós-traumático ou uma condição inteiramente separada.
O ruim que é bom, o gostoso que dói,
o amor que odeia
O juízo de valores de quem passa por situações traumáticas por longos períodos de tempo é afetado. Ser invadido por um sistema de valores que beira ou é francamente insano faz com que o mundo interno se desorganize um tanto. Sendo assim a noção de si mesmo não é construída em bases tão firmes. Acontece um distanciamento de si mesmo, do self.
O que fica mais próximo é a incerteza e confusão, "O que eu vivo é normal?", "A raiva ou ódio que sinto é valida?", "Tudo o que está acontecendo parece normal e anormal ao mesmo tempo", "Todos ao redor de mim encaram isso com normalidade, eu também deveria?".
Quais são os sintomas do TEPT Complexo?
Qual é a causa do TEPT Complexo?
Por que as situações traumáticas continuam acontecendo?
Quais são os sintomas do TEPT Complexo?
Alterações na regulação dos afetos e impulsos
Alterações de atenção e consciência
Alterações na autopercepção
Alteração e dificuldade nas relações com outros
Alteração nos sistemas de significado e valoração
É como se a pessoa traumatizada tivesse um juízo de valores invertido ou então confuso, entra em dúvida sobre o que pode ser certo e errado e algumas vezes isto pode se manifestar até em uma crise de angústia.
O mal querer e o bem querer, o que machuca e o que faz bem podem ser conceitos que são muitíssimo fluidos ou voláteis, e isso pode fazer com que a experiência de viver seja caótica e o sentimento de insegurança um tanto constante, por que há uma sensação de que não existe nada certo ou firme com o que pode se contar.
A desregulação emocional é presente, ela pode ser sentida como um estado contínuo de insatisfação e inquietude, estado de raiva explosiva ou então extremamente inibida. Pode haver também uma compulsão sexual muito marcada ou então uma sexualidade extremamente inibida. Em casos mais graves pode haver ideação suicida e auto-mutilação.
A auto percepção fica prejudicada no sentido de que a própria potência não é percebida ou até não crível. O que persiste é a sensação de desamparo, vergonha, auto responsabilização ilógica, estigmatização, se sentir diferente de todos ou até se sentir não humano.
Qual é a causa do TEPT Complexo?
Trauma interpessoal no início da infância, ao longo da infância e adolescência
Abuso infantil, negligência ou abandono
Ambiente doméstico violento ou abusivo
Repetidamente ter presenciado violência ou abuso
Ter sido invadido por um sistema de valor duvidoso, ambíguo ou controverso
Ter sido isolado do convívio do grupo regular que não apresenta perigo
Em casos graves:
Ser forçado ou manipulado à prostituição
Tortura, sequestro, escravidão
Ser prisioneiro de guerra
A questão da repetição dos traumas ao longo da vida
Não é incomum que os mesmos desafios e situações traumáticas primárias apareçam na nossa trajetória, ainda que com roupagens diferentes. Freud chamava isso de compulsão à repetição.
Segundo ele, toda a vivência que não não alcança uma digestão psíquica e emocional suficiente, como o trauma, são reprimidos e alocados em algum lugar longínquo do inconsciente. Ele está fora da consciência mas não inativo.
É por isso que Freud diz "Nós não somos os donos da nossa própria casa". O inconsciente também guia nossas decisões e estofa nossos pensamentos. Sendo assim ele pode nos conduzir de novo e de novo à aquele algo intolerável que foi guardado na tentativa de o digerir efetivamente desta vez.
A relação com o perpetrador
A nomeação que se faz: abusador, perpetrador, é em si mesma um elemento que causa dúvida e confusão ao traumatizado. Afinal, como alguém poderia chamar um pai que dá um teto e comida de perpetrador? Como chamar um líder espiritual que ama e é caridoso de abusador?
A pessoa traumatizada pode experimentar algumas percepções sobre perpetrador: preocupação exacerbada com a relação, ideias de vingança, uma atribuição utópica de poder total à figura, idealização ou gratidão paradoxal, senso de que a relação tem uma qualidade especial ou sobrenatural, aceitação das crenças e racionalizações da figura perpetradora.
O perpetrador pode ser um pai, uma mãe, um cuidador ou então um ambiente que tenham características psicóticas, perversas ou patologicamente narcisistas. Esta(s) figura(s) e a relação que se tem com ela(s) viram referência, assim como todo pai, mãe e cuidador se tornam.
O perpetrador é aquele que possui qualidades predatórias."O mundo é dos espertos", "Eu fiz por que você deixou" , "O golpe tá aí, cai quem quer" são frases que marcam a idéia (ou delírio) de superioridade que habita este tipo de personalidade. Há uma extrema recusa à sensibilização, despojamento, humildade e até ao amor.
A relação com os outros
A relação com as pessoas e o mundo lá fora sofrem alterações. A pessoa traumatizada pode ter a necessidade de isolamento e afastamento. Relações íntimas ou amorosas tendem a ser disruptivas ou turbulentas como consequência do mundo interno do traumatizado que também tem as mesmas características.
Há também uma procura constante pela figura do "salvador" e idealização de que algo ou alguém tem a capacidade absoluta de curar, libertar, defender ou redimir o traumatizado ou até fazê-lo experimentar o estado de êxtase. Esta é uma armadilha perigosa pois estas são competências idealizadas e utópicas que justamente personalidades psicóticas, perversas ou narcisistas costumam se travestir delas.
Nós humanos fazemos o possível para cuidar e amar dos nossos, mas não podemos e nem temos capacidade de entregar um ideal épico. Temos as nossas limitações, somos mortais. Os olhos do traumatizados estão viciados e ele tende a ver qualidades mágicas em qualquer superfície que se mostre adequada para a sua projeção. Isto acaba criando uma sequencia de frustrações que podem levar à um estado de desconfiança e descrença nas relações.
Na relação com o outro pode haver também uma tolerância extrema à comportamentos inadequados, violentos e cruéis. O filme "Speak no Evil" retrata isso de forma absurdamente angustiante e categórica. A atração pelo mistério da ambiguidade do perpetrador, a dúvida sobre a adequação dos próprios sentimentos e intuições e o comportamento submisso adquirido do traumatizado fazem com que se envolvam facilmente em jogos perversos e insanos. Não recomendo este filme à aqueles que estão muito sensibilizados.
Destruir e Amar a coisa certa
Destruir sim. Não do jeito concreto e comensal do perpetrador, mas de um jeito simbólico, lúcido e digno. Há na cultura religiosa indiana o deus da destruição, Shiva. Segundo o hinduísmo ele é o senhor dos finais e abre caminho para a renovação.
Acho este simbolismo muito precioso e necessário à nós que estamos imersos em uma cultura que exalta a permanência, imortalidade, não vazio, não falta. Tu não podes ser nada menos que perfeito. A morte, a falta, o limite, o vazio e a insuficiência são coisas que nos constituem. Não necessariamente nos diminuem, mas sim abrem campo em nosso psiquismo para a aceitação, a paz, a humildade, o sentimento de irmandade, gratidão e pertencimento.
O que acontece geralmente com o traumatizado é que ele simbolicamente destrói o amor e ama a destruição. Destruir e amar a coisa certa é algo muito importante no sentido de que este processo vai estabelecendo internamente um novíssimo juízo de valores que pode ser mais acurado, afinal, quando vivemos, passamos pela experiência e aprendemos, saímos com um entendimento maior sobre o que é bom ou ruim para nós.
Aqui o estado de sobriedade é fundamental para tal discernimento. Se você sente que não consegue discernir, procure ajuda.
Os casos de TEPT Complexo em integrantes de cultos
Os cultos podem ilustrar bem o funcionamento e a construção da condição do TEPT Complexo. É um exemplo das formas mais grotescas de trauma complexo que uma pessoa pode viver.
Michel Young, quando criança, era integrante de uma seita chamada "Children of God", procurada pelo FBI e Interpol. Entre as práticas do grupo havia estupro, incesto, encarceramento e sequestro. A justificativa para tal era a o crescimento da população da tribo, assim dizia o carismático líder Evangélico David Berg.
O culto adotava o dogma cristão e o conceito hippie de amor livre dos anos 60, Berg dizia aos muitos seguidores que "Seu corpo não é seu, ele pertence à Deus". Young teve sua primeira experiência sexual aos 4 anos de idade.
O procurador geral de Nova York estimou que haviam pelo menos 120 comunas antes de seu líder falecer em meados dos anos 2000. É realmente chocante que pessoas comuns como eu e você possam fazer parte de um delírio coletivo, mas não é algo impossível.
Quando a seita perdeu força com o falecimento do líder, seus seguidores tiveram que pouco a pouco voltar à sociedade e foi aí que a confusão começou a tomar Michel "Eu ainda estava pensando no que eu devia fazer e no por que eu saí. Eu deveria ter saído? E Jesus é real? Eu estava muito assustado, tinha ataques de pânico pensando que eu iria para o inferno."
Conclusão
As pessoas que tem o diagnóstico de trauma complexo foram enlouquecidas mas não são loucas. Foram expostas à um ambiente psicótico mas não são esquizofrênicas. O que surge da vivência traumática é pura confusão de valores e sofrimento.
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